Entrevistar um dos fundadores do Sistema Unimed, que neste ano de 2017 completa 50 anos de fundação “a UNIMED de Santos” é uma tarefa muito especial. Uma grande oportunidade para sabermos sobre suas falhas de origem assim como a importância deste robusto modelo de operadora de saúde no Brasil.
Plácido Antônio da Rocha Miranda*

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Trata-se do médico e experiente segurador – durante anos presidente de uma das maiores seguradoras do país, a Companhia Internacional de Seguros – Plácido Antônio da Rocha Miranda. Aos seus 96 anos, conhece, como poucos, o profissional médico bem como as nuances de um mercado de assistência à saúde cuja lógica vem do mercado segurador que, em sua essência, consiste no mutualismo isto é, um sistema onde todos pagam pouco para que poucos possam, quando necessário, utilizarem. Lógica esta muitas vezes não compreendida pelo mercado, indistintamente, através de seus três principais agentes: as operadoras, a rede e também os beneficiários. Esta questão se agrava quando tratamos do sistema cooperativo de assistência à saúde. Nele, dois agentes se confundem. A operadora e os credenciados (nas UNIMEDs, os cooperados). Estes últimos não sabem muito bem como proceder. Se como empresários (sócios de uma empresa de planos de saúde) ou se como profissionais liberais (cooperados). Se agirem como empresários – sócios de uma empresa – devem atender menos, ainda que visando sempre o máximo bem estar dos seus pacientes, evitando o desperdício. Enquanto credenciados (profissionais liberais – cooperados), remunerados por serviços prestados, devem atender o máximo possível, sem muita preocupação com os desperdícios. Este é um dos principais conflitos do sistema cooperativo. Além do que, para muitos destes sócios (cooperados), aumentar o lucro da operadora (cooperativa) muito raramente se converte em benefícios para eles e sim para os seus administradores, via de regra, muito bem remunerados. Além de um pouco da história sobre o surgimento das UNIMED’s, Placido nos fala sobre a importância do Intercâmbio, que serviu de base para que as UNIMEDs assumissem papel de destaque, em termos de tamanho e capilaridade, no mercado de saúde brasileiro. Comenta sobre as falhas da verticalização e faz severas críticas ao profissional médico enquanto gestor. Coloca o dedo em dois pontos nevrálgicos para a sustentabilidade do sistema: sua forma de tarifação e o inexistente sistema capitalização. Por último, finaliza com um importante “toque” que nos leva a refletir sobre o SUS ideal x o SUS possível. Reflexão fundamental para que o sistema privado de assistência à saúde no Brasil deixe de ser substituto ao público e passe a ser complementar, como de fato deveria ser.

Confiram:

1. CRM: Plácido, a primeira Unimed – a de Santos – surgiu em 1967, há exatos, 50 anos. Na sua essência, foi um movimento visando combater o “mercantilismo” na saúde já que o setor público não dava conta do recado e as empresas de medicina de grupo iniciavam um processo crescente de credenciamento de profissionais médicos. Você como médico e também como empresário do setor segurador fez parte deste movimento. Conte-nos um pouco sobre como surgiram as UNIMED’s? 

Plácido: Sou médico e segurador. Trabalhei, simultâneamente, durante 70 anos no mercado segurador e na área de saúde. Fiz parte do movimento Unimediano a partir de 1972 quando vieram a Petrópolis – RJ, Edmundo Castilho e Djalma Chastinet. Numa reunião de médicos realizada no cine teatro Santa Cecília, compareceu uma grande quantidade de médicos de Petrópolis e localidades adjacentes. Castilho, orador fluente, fez um relato da fundação da Unimed de Santos – que foi a primeira, e depois a de São Paulo capital. Chastinet, também, usando da palavra, forneceu detalhes da fundação e funcionamento da Unimed Rio, por ele fundada. Vigia o governo militar do General Médici,1969-1974.

2. CRM: Os Planos de Saúde muitas vezes foram e, ainda hoje, são conhecidos também por Seguro Saúde. Como as seguradoras passaram a atuar neste mercado?

Plácido: Durante muito tempo, não existia nenhuma entidade operando em negócios de seguro saúde. A lei permitia que as seguradoras fizessem seguro saúde unicamente indenizando os serviços prestados, em moeda corrente. no mercado de saúde Isto era um complicador. Mais tarde as seguradoras passaram a formatar uma rede referenciada que permitia aos beneficiários sua utilização sem desembolsar diretamente aos prestadores e posteriormente serem ressarcidos pelas seguradoras, conforme valores pré-contratados. Isto, naturalmente, em muito, impulsionou a comercialização deste tipo de seguro.

3. CRM: Você já comentou comigo que as UNIMED’s “ nasceram de forma errada”. O que é nascer de forma errada? Seria utópico pensar que isto poderia ser corrigido, 50 anos depois?

Plácido: O sistema cooperativo era bastante conhecido na prática fabril e comercial, que tem sua origem com os tecelões americanos. Não havia, até então, cooperativa de profissionais liberais; portanto tivemos que adaptar o modelo às leis brasileiras. A união de trabalhadores em cooperativas fortalece a marca e facilita a venda de serviços ou produtos garantindo trabalho para o maior número possível de profissionais. Em contrapartida são recolhidas taxas para o custeio administrativo da operação. Ao contrário disso, o que se viu com as cooperativas de trabalho médico foi o surgimento de singulares com estruturas pesadas e com dirigentes remunerados a valores que, quase sempre, inviabilizam a sustentabilidade da operação. Alterar isto é, atualmente, é quase impossível.

4. CRM: Como surgiu o que hoje é conhecido por “intercâmbio. Neste modelo, um beneficiário de uma UNIMED no interior do país pode ser atendido em qualquer outra UNIMED, no caso de ele estar em trânsito (fora de sua base). Conte-nos como isto ocorreu?

PlácidoO primeiro problema de difícil solução foi estabelecer, um contrato padrão. Cada uma das cooperativas achava o seu, o ideal. Isso dificultava ter uma cobertura ampla neste vasto território brasileiro. Sem chegar a um acordo finalmente em uma reunião nacional, no Rio de Janeiro, no extinto Hotel Gloria, houve presença maciça de cooperativas do Brasil . Após horas de discussão, chegou-se a um entendimento em torno de um modelo único e padrão de cobertura nacional, que deveria ser adotado por todas as Unimed’s,. Se as singulares (cada Unimed) quisessem ter contratos diferentes poderiam fazê-lo, porém com cobertura local. Como consequência foi então criada uma comissão para estabelecer um contrato padrão que chamamos de “ Fênix “ (segundo a mitologia, o pássaro Fênix, antes de morrer, entrava em combustão, para depois renascer….). A informática ainda dava seus primeiros passos, com volumosos computadores com painel de válvula. Foi então que, em uma das reuniões, ficou decidido que o Dr. Carlos Eduardo Stepmpniewsky – alto funcionário da UNIMED – e eu , iríamos aos EEUU para verificar como atualizar a área de informática. No retorno, em nova reunião em São Paulo, estabeleceu-se que compraríamos um “main frame “ que serviria a todo o Brasil. As Unimed’s teriam minicomputadores com Sistema Nacional Intercomunicável e passível de controlar o intercâmbio das diversas unidades. Assim sendo, com esses elementos, e o “Plano Fênix “em execução, o Sistema Nacional passou a ser viável e a operar de forma razoável.

5. CRM: Este intercâmbio é, no entanto, hoje, um fator de desestabilização do sistema UNIMED. Isto porque, singulares deficitárias não pagam às demais o valor devido pela utilização de seus beneficiários, em trânsito. O que falhou neste sistema?

Plácido: Há opiniões que consideram o sistema de intercâmbio desestabilizador. Considero-o fundamental – podendo gerar algumas pendências. Atualmente são grandes as falhas neste sistema que, a meu ver, foi mal administrado pois, quem assumiu o dever de atender e não foi capaz de fazê-lo, teria de ser eliminado.

6. CRM: Há importantes personalidades no mercado que afirmam que o Sistema de Cooperativas Médicas está com seus dias contados. De fato existe um número expressivo de singulares em péssima situação e algumas importantes já até faliram, como a Paulistana. Outras, como a do Rio de Janeiro, estão em estado pré-falimentar. O que você pensa à respeito? 

Plácido: Cooperativa é um sistema idealizado pelos americanos, em que o capital tem uma importância relativa – pois que cada cooperado, independente do capital realizado, só terá um voto. Existem sim problemas que as afetam. Um deles, já mencionei. A diretoria não deveria ser remunerada. Existem vários outros. Não somente das cooperativas mas também das demais operadoras de assistência à saúde – as OPS. Um dos principais diz respeito às tarifas (os prêmios, em linguagem de seguro) cobradas. Elas deveriam ser feitas em base atuarial – tendo uma parte destinada a capitalização. Isto permitiria que se tivesse taxas iguais para todos os membros de um grupo, não havendo aumento com a idade, nem com o agravamento de risco, pois a capitalização cumpriria esta finalidade. Atualmente, a precificação é feita em base anual, aumentando a taxa conforme a idade, o que acarreta um processo extremamente difícil: os velhos com taxas altíssimas, numa idade em que, geralmente, o rendimento é menor .

7. CRM: Mas hoje existe uma limitação de aumento de tarifas (prêmios) por faixa etária onde este problema foi limitado. Você acha que esta interferência do órgão regulador salutar para o mercado?

Plácido: Certamente a criação e a atuação da Agência Nacional de Saúde – ANS, traz benefícios para o mercado. No entanto, a máxima permanece: “evitar que o estado interfira nas taxas e condições”. Como faz agora, aumentando a cobertura sem uma contrapartida na taxa, sempre gera distorções. Uma das mais evidentes, atualmente, é a paralisação da venda de planos individuais por parte da maioria das operadoras de saúde.

8. CRM:Uma grande tendência é a verticalização. Muitas operadoras de saúde partiram, e estão alcançando bons resultados, com este modelo de negócio através da construção de hospitais próprios. Diversas Unimed’s adotam este modelo. A maioria sem sucesso. Será porque o médico não é um bom gestor ou será que esta fórmula não funciona, ao menos para as UNIMED’s?

Plácido: O Médico não é, salvo honrosas exceções, um bom administrador. Não tem vocação nem foi preparado para exercer esta função. Um dentre vários exemplos disso, é o do Hospital Santa Tereza, em Petrópolis. Depois que passou a ter uma administração profissional tornou-se lucrativo e de boa qualidade. Sem contar as inúmeras singulares que, após construírem hospitais, passaram a ter prejuízos. Isto não é uma regra geral mas, infelizmente, é o que aconteceu e acontece com a maioria delas. A lógica dos dois negócios é distinta. A de uma operadora é vender planos de saúde. Quanto menor a utilização dos seus beneficiários, maior o seu lucro. A dos Hospitais é o contrário. Seu lucro advém de uma maior ocupação/utilização. Combinar estes dois negócios sobre uma mesma administração requer muita competência. É difícil, é para poucos.

9. CRM: Passado todos esses anos e conhecendo melhor o ser humano em geral e o médico em particular você ajudaria a criar novamente as cooperativas médicas?

Plácido: Certamente que sim. Acho que sempre haverá espaço para as Cooperativas e outras empresas comerciais de assistência à saúde. Precisamos ter em mente que o Brasil é um país com 5.400 municípios. É praticamente impossível uma entidade só, abranger este colosso.

10. CRM: Com toda sua experiência de um empresário de sucesso no ramo segurador, o que você proporia para sairmos de um modelo de Assistência à Saúde onde o Privado (os planos de saúde) substituem ao invés de complementarem o sistema de saúde pública (o SUS)?

Plácido:  No Brasil e no resto do mundo, o estado cada vez mais atende as classes menos favorecidas. Esta é sua função social, na área da assistência à saúde. O cancelamento do “Obama Care” nos EEUU tende a deixar um mínimo de vinte milhões de pessoas totalmente desassistidas. Também na Inglaterra, que tinha um sistema universal de atendimento na saúde, vem sendo progressivamente reduzido. É necessário que a sociedade brasileira rediscuta o SUS. Existe uma enorme diferença entre o SUS ideal e o SUS possível.